quinta-feira, 17 de agosto de 2017

"Dizes-me que tombou mais uma pedra ao moinho e que agora parece um castelo abandonado depois de atacado por sarracenos; recordo como cantava o moinho, em sons tão variados: o roçar das pedras aconchegadas no grão, o verter da água nas pás, o gemer da roda, triste e magoado. Lembro-me da passar a mão na maciez da farinha e de sentir o cheiro do milho moído a invadir-me as narinas, doce, seco e novo.
Espreitar a farinha amassada na bacia de barro e vê-la crescer era acreditar num milagre. O odor acre do fermento enchia a cozinha e o lume crepitava pela porta aberta do forno como se chamasse o pão. As tuas mãos tendiam a massa e os teus seios, de onde bebi a vida que tenho, baloiçavam ternamente sob a blusa fina como se estivessem vivos; depois a pá levava o pão muito para dentro quando já tinhas recolhido as brasas a um canto. Esperávamos; tu sentada num pequeno banco tecido a palha de bunho, eu sobre os teus joelhos, ambos impacientes. Lá dentro, dizias, soprava um ar quente e forte sobre a massa, fazendo-a lembrar-se do tempo em que tinha sido milheiro altivo ao vento, que crescia enquanto se ia esquecendo desse passado de planta verde e raízes húmidas.
Tiravas os pães um a um, encrostados, levemente castanhos, quentes, a fazerem-nos crer que o milagre se tinha dado, todo o milagre da vida nesse instante tranquilo de um pão cozido; partias dois que fumegavam como se estivessem vivos e até parecia que a massa se mexia, aconchegando-se ao ar cá de fora. Nunca os meus olhos viram tanto, mesmo depois de ter aprendido a juntar as letras, a desenhá-las, mesmo depois de ter visto a cidade e o rio, de ter pressentido o mundo e percebido o amor."

António Tavares  em "Todos os Dias Morrem Deuses"

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