terça-feira, 23 de abril de 2024

"Nunca Chegará O Fim Do Mundo" de Màrius Sampere

"Nunca chegará o fim do mundo
se eu lembrar a tua voz
e depois for lembrada
a minha voz, e muito mais tarde
ainda, fiel memória,
a conjurar as trevas e as fossas,
arrancar do silêncio as imperceptíveis
perguntas dos olhos cegos: onde estás?, onde estás?,
onde estás?, e nenhuma resposta
se erguer da terra
à excepção de uma flor."



Màrius Sampere (1928) em "Resistir Ao Tempo - antologia de poesia catalã"
Assírio & Alvim
1ª edição, Junho de 2021
Página 401

"Um Conjunto De Espirais - Livro de Horas IX" (III)

 "Relaciono-me mal com pessoas toscas, indiferentes à variedade de tons que estão diante de si. Tosco é falta de sensibilidade, e sensibilidade é o rio da paisagem que lhe imprime o seu traço, ou aspecto fundamental. Torno-me insuportável, a não ser para os seres suaves do silêncio - ou os selvagens, que fazem levantar com ardor as miríades de sonhos da floresta."


" ... mais do que nunca desejo escrever vivendo, ou seja, desejo passar o meu silêncio a escrever, para que ele seja ouvido, quando já não houver nem silêncio nem contemplação que me atinjam."


"A profundidade inexplorada dos mundos é a minha razão de viver, ou seja, é o meu sentimento de escrever."


"Cada frase é uma alma crescendo."


"A fotografia é de um exterior, mas é um princípio do íntimo."



Maria Gabriela Llansol em "Um Conjunto De Espirais - Livro de Horas IX"
Assírio & Alvim
1ª edição, Setembro de 2023
Páginas 154, 216, 224, 233 e 337

segunda-feira, 22 de abril de 2024

"Elegias do Recomeço, VI" de Rosa Leveroni

 
"Amor, não me perguntes porque te amo
se não encontro razões. Mas poder-te-ia
falar do rouxinol maravilhoso
ou do pulsar do sangue, ou da segura
doçura da raiz dentro da terra,
ou deste pranto suave das estrelas?
Conhecerias o ardente mistério
das asas indicando o azul em calma,
ou o fluir da fonte ou, do ramo,
este respiro beato quando o ar passa ...?
Amor, não me perguntes porque te amo,
se nem estando em mim eu saberia
observar-te como és, porque respiras
no meu respirar, se de entre os meus sonhos
és o único sonho vivo que 
a Morte não poderia arrebatar ..."



Rosa Leveroni (1910-1985) em "Resistir Ao Tempo - antologia de poesia catalã"
Assírio & Alvim
1ª edição, Junho de 2021
Página 283

domingo, 21 de abril de 2024

"Um Conjunto de Espirais - Livro de Horas IX" (II)

 
"Tenho vários cafés à minha volta, mas o que prefiro é o do Jardim da Parada, com a entrada aberta sob as árvores. O jardim quadrado da cidade deixa uma praça quadrada quando desaparece, se desaparecesse, e o seu estímulo é humano e vegetal, uma vigília do vegetal sobre o humano, e a minha vigília que os liga. O café padece de falta de palavras úteis, mas as inúteis são um rumor que me entrega a clorofila de que eu preciso."


" - A que pássaro posso perguntar o que é a liberdade?


"Eu amo os seres serenos que não me perturbam, e cuja rotação é uniforme; eu apaixono-me pelos seres instáveis que variam, que caem no rio do esquecimento - e são enterrados muito longe."


" ... o quotidiano tem dimensões extremamente pequenas para nos retratar por inteiro."


"O texto habita qualquer morada."



Maria Gabriela Llansol em "Um Conjunto De Espirais - Livro de Horas IX"
Assírio & Alvim
1ª edição, Setembro de 2023
Páginas 90, 97, 101, 117 e 141

quarta-feira, 3 de abril de 2024

"Um Conjunto De Espirais - Livro de Horas IX" (I)

 
"Nós somos também os rígidos, há uma parte de nós cheia de obsessões, de caminhos traçados, lamentáveis. É prudente fazê-los retroceder, ou dar a outros caminhos tal elasticidade que o resultado final seja de brilho, e não de cadavérica ferrugem."



"As gaivotas voltaram ao meu horizonte pairando sobre a Praia das Maçãs. Personalizam nos seus voos errantes a minha dispersão, a de quem tem, contra o tempo presente, mil pensamentos em fuga. (...) Não sei para onde fogem essas imagens entrelaçadas de gaivotas que me deixam perceber que é num ponto da dispersão que está o novo lugar."



"A Serra chamou-me à vida sob a neblina, juntou-se a mim e afastou, com o sinal que me fez na testa, a minha fragilidade de tristeza. Eu sei que a nuvem, a Serra, o nevoeiro, traçam seus caracteres no meu sangue. Como retribuir-lhes antes de morrer?"



Maria Gabriela Llansol em "Um Conjunto De Espirais - Livro de Horas IX"
Assírio & Alvim
1ª edição, Setembro de 2023
Páginas 31, 86 e 91

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

"Múltiplas Mãos" de Armando Silva Carvalho

 "As mãos amadurecem, sorvem todo o sol
a que cada corpo tem direito
apenas porque nasce.

Mas há mãos excessivas e maduras de sonhos,
conchas duma maré que erra nas dunas
e se arrasta entre as areias mortas
e as nuvens térreas, brônzeas,
não santificadas.

Eu vejo-me nas mãos dos outros animais,
castigam-me pesadas 
contra os umbrais da noite.
São as graças do chumbo, fotos negativas
da alegria do mundo,
recolhem todo o peso dos corpos
naufragados.

E são as mãos da alma, mãos recolhidas da vida,
tão belas e tão fúnebres,
que o fogo, o fogo apenas as acaricia
com a leve e muda labareda
de deus."



Armando Silva Carvalho em "A Sombra Do Mar"
Assírio & Alvim
1ª edição, Julho de 2015
Página 90

"De Costas Voltadas" de Armando Silva Carvalho

 "Sempre agarrada aos dias, com o andar do tempo,
tudo passa a ser um enigma, a idade é uma senhora meio
amarrotada,
a lamber os jornais e a trocar as linhas
todas as manhãs.

Acabaram-se de vez as teorias sobre a voz do silêncio,
é outra a filosofia dos ruídos do corpo.
Quem não arrebanhou as metáforas para o inverno da vida
aquece quando aquece a língua e arde no frio.

Os dias são muito mais altos, parecem olhar por cima as 
gargalhadas,
os cães mais impacientes, mais cínicos,
o meu, que não existe, aprendeu a ralhar e já não ladra,
quer ser o meu compadre, e é isto, um cómico forçado.

Nunca pensei fazer poemas destes, tão naturalistas.
Andei a reler o Campos, mas não sei subir à sua metafísica.
O homem estragou de vez a vida a muita gente.
O Eugénio é que dizia:
com o Pessoa só de costas voltadas."



Armando Silva Carvalho em "A Sombra Do Mar"
Assírio & Alvim
1ª edição, Julho de 2015
Página 17

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

"Gargalo Grande" de Daniel Maia-Pinto Rodrigues

 
"Quando gaivotas se deslocarem
no azul da imagem, quando
nos ervaçais crescerem largas
acácias onde os pássaros brilhem -
quiseste partir.
Deixasses ao longe no alpendre
o início da iluminura.

Quando por fragrâncias perfeitas
descobrirmos o alecrim do outono,
é a hora de as rolas
adoçarem o silêncio, é a hora
de as mãos se desprenderem do frio.
Crê que, do lirismo
continuo a beber pelo gargalo."



Daniel Maia-Pinto Rodrigues em "Turquesa"
Imprensa Nacional - Casa da Moeda
1ª edição, Dezembro de 2019
Página 89

"Alteração" de Daniel Maia-Pinto Rodrigues

 "Olho estes desenhos
com calma espalhando a água das cascatas.

Nada me garante que dimanem luz pelos campos
os pássaros da manhã
nem que o fim dos bosques se alongue
pelas nuvens.

Olho de novo os desenhos
em relevo já a água turbulenta.

Ouvem-se as grandes tílias
comentando em segredo de brisa
a palidez de quem as desenha."



Daniel Maia-Pinto Rodrigues em "Turquesa"
Imprensa Nacional - Casa da Moeda
1ª edição, Dezembro de 2019
Página 33

"Turquesa" de Daniel Maia-Pinto Rodrigues (I)

 "Entendem as folhas
a rapidez
com que se desprendem dos ramos.
Entendem as asas
a debilidade dos pássaros.

Acima de tudo
o que interessa a novembro
é as crianças poderem dizer
está vento
é sentirem-no arrebatar-lhes os cabelos
engolfar-se nos gorros
misturar-se na roupa quente.

Há uma criança na escola
que através dos vidros vê novembro -
e a meia distância
ao lado do novembro
vê o anjo da guarda
a atirar pedras
lentamente contra a luz."



Daniel Maia-Pinto Rodrigues em "Turquesa"
Imprensa Nacional - Casa Da Moeda
1ª edição, Dezembro de 2019
Página 29

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Filmes: o que mais gostei em 2023

  • "A Arte da Luz tem 20.000 Anos" de João Botelho @ RTP2  
  • "ChungKing Express" de Wong Kar Wai @ TvCine Edition
  • "Dias Selvagens" de Wong Kar Wai @ TvCine Edition
  • "Disponível para Amar" de Wong Kar Wai @ TvCine Edition
  • "História de um Proprietário Rural" de Yasujiro Ozu @ Cinema Medeia Nimas
  • "Mal Viver" de João Canijo @ TvCine Edition
  • "Nyad" de Elizabeth Chai Vasarhely e Jimmy Chin @ Netflix
  • "O Fim do Outono" de Yasujiro Ozu @ Cinema Medeia Nimas
  • "Ramiro" de Manuel Mozos @ RTP2
  • "Viver Mal" de João Canijo @ TvCine Top

Dos Dias: o que mais gostei em 2023

 - 2º Evento de Xadrez @ Quinta das Palmeiras
 - A poesia como exercício espiritual @ Casa da Malta
 - A poesia do Al-Andaluz @ Livraria Municipal Verney
 - Marta Pereira da Costa (com António Pinto - viola) @ Museu do Fado
 - Oficinas de Maio no Jardim (papel de plantas) @ Casa da Cerca - Centro de Arte Contemporânea
 - Simbologia no Cemitério @ Cemitério dos Prazeres
 - Sons do Oriente Lírico @ Centro Científico e Cultural de Macau

Ecrãs: o que mais gostei em 2023

  • "A Paisagem de Artur Pastor" de Fernando Carrilho @ RTP2
  • "A vida é um autocarro vazio" @ RTP2
  • "Entre Imagens" @ RTP2
  • "Espaços incríveis de George Clarke"
  • "Eugénio de Andrade, o poeta" @ RTP3
  • "Herberto Helder - Meu Deus Faz Com Que Eu Seja Sempre Um Poeta Obscuro" @ RTP2
  • "Histórias da Montanha" @ RTP1
  • "Macaenses em Lisboa: Ilusão ou Realidade" @ RTP2
  • "Segredos das Rochas" @ RTP2
  • "Ruy Belo, Era Uma Vez" @ RTP2

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Arte & Cultura: o que mais gostei em 2023


 - "Avesso dos Afetos" de Sofia Salazar Leite @ Centro Cultural de Cascais

- "Da Calma Fez-se O Vento" de Sandra Rocha @ MAAT

- "Mater" de Maja Escher, Marta Castelo e Virgínia Fróis @ Pavilhão Branco

- "Metamorfoses - Os Rios Transbordam e Desabam ..." de Ilda David @ Sociedade Nacional de Belas Artes

- "Morphosis" de Catarina Nunes e Vanessa Barragão @ MU.SA - Museu das Artes de Sintra

- Mundo Flutuante: estampas japonesas «ukiyo-e» @ Fundação Calouste Gulbenkian

- "Mural da Felicidade" de Carolina Caldeira @ Avenidas - Um Teatro Em Cada Bairro

- "Objectos Intemporais, Delicadas Intimidades" de João Duarte @ Fábrica das Palavras

- "Panorama" de Daniel Blaufuks @ Galeria Vera Cortês

- "Rui Chafes e Alberto Giacometti. Gris, Vide, Cris" @ Fundação Calouste Gulbenkian

- "Terra Mineral Terra Vegetal" de Duarte Belo @ Biblioteca Nacional de Portugal

O que mais gostei de ler em 2023


FICÇÃO:
- "Alguns Preferem Urtigas" de Junichirõ Tanizaki
- "Cerromaior" de Manuel da Fonseca
- "Mãe" de Pearl S. Buck
- "Maina Mendes" de Maria Velho da Costa
- "Manhã e Noite" de Jon Fosse
- "Mil Sóis Resplandecentes" de Khaled Hosseini
- "Misericórdia" de Lídia Jorge
- "Sob a Estrela do Outono" de Knut Hamsun
- "Um Cão no Meio do Caminho" de Isabela Figueiredo
- "Uma Paixão Simples" de Annie Ernaux




NÃO FICÇÃO:

- "A Era do Homem Forte" de Gideon Rachman
- "Adopção Tardia" de Maria Sequeira Mendes
- "Confrarias de Portugal" de Ana Catarina André e Marisa Cardoso
- "Fé, Esperança e Carnificina" de Nick Cave e Sean O´Hagan
- "Football Leaks" de Rafael Buschmann e Michael Wulzinger
- "Os Engenheiros do Caos" de Giuliano Da Empoli




POESIA E OUTROS GÉNEROS:

- "Cadernos do Verão" de Manuel Matos Nunes
- "Caixa Inglesa" de Olga Gonçalves
- "Campo Aberto" de Sebastião da Gama
- "Canina" de Andreia C. Faria
- "Ervas" de João Miguel Fernandes Jorge
- "Insolúvel Flautim" de Manuel Matos Nunes
- "O Árabe do Futuro 1" de Riad Sattouf
- "O Azul Imperfeito - Livro de Horas V (Pessoa em Llansol)" de Maria Gabriela Llansol
- "O Livro das Coisas Ardidas" de Emanuel Jorge Botelho
- "Os Pássaros Brancos e Outros Poemas" de W. B. Yeats
- "Os Passos em Volta" de Herberto Helder
- "Obra Poética I" de António Ramos Rosa
- "Obra Poética II" de António Ramos Rosa
- "Pequeno Tratado das Figuras" de Manuel Gusmão




FOTOGRAFIA E ARTES

- "Artur Pastor - Portugal país de contrastes"
- "Entre as Águas" de João Mariano
- "Fluvial" de Tito Mouraz

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

"A Nossa Casa" de Sebastião Da Gama

 "A luz acesa
(petróleo débil)
e tu inquieta, feliz, à minha espera.
Cismam livros de versos sobre a mesa.
Sonolentos, os cravos da varanda
cabeceiam nos vidros.

Ando lá fora.
(Lá fora, a ventania,
a noite, o frio dos Astros,
a Poesia decerto ...)

A luz débil, insistes no bordado.
Os nossos filhos dormem
(levantaste-te agora para vê-los ...).

Irónica, a Poesia
sabe que ando lá fora a procurá-la,
indiferente ao vento e à noite fria."



Sebastião Da Gama em "Campo Aberto"
Ática, Janeiro de 1999
Páginas 110 e 111

"Plenitude" de Sebastião Da Gama

 
"Sorri, sorriste. O Mundo era pequeno.
Mas bastava. Cabia nele, intacto,
o encantamento pleno
que te detinha ali, junto de mim,
que nos detinha ali, serenos, puros,
longe da multidão, longe do Tempo
- rio que passava ao largo e nós ficávamos."



Sebastião Da Gama em "Campo Aberto"
Ática, Janeiro de 1999
Página 108

"O Cais" de Sebastião Da Gama

 "Já o cais não é de pedra,
de tanto sentir o Mar.
Já não é, a pedra, lisa:
já ganha forma de velas
pandas de vento e de orgulho;
já deixou de ser branquinha,
p´ra ser azul como as águas.

Já o cordame, que sonha
noite e dia sobre o cais,
o tem o sonho mudado
em algas prenhes de iodo.
Degraus de pedra se animam
e pelas ondas se atrevem
- botes sem mestre, perdidos,
sem outro leme que o gosto
de ir pelas ondas adentro.

Marujos que o nunca foram,
assentadinhos no cais
desde a hora do nascer,
quem foi que disse que tinham
raízes naquelas pedras?
- Já lhes despontam nas costas,
já por ares e mares os levam,
asas leves de gaivota.

Cada traineira que passa
convida o cais a sair.
Já o cais não é de pedra.
O sal moldou-lhe uma quilha,
as ondas o encurvaram,
os limos o arrastaram
p´ra lá de todo o limite,
e o cais cedeu ao convite
de ser um barco sem mestre.

Lá vai perdido nas ondas
e não lhe importa a chegada.
Deitou a bússola ao Mar.
Fez uma estaca do leme,
que atesta o sítio em que foi.
Voltou as costas à terra
e o seu destino cumpriu-se,
que era partir e mais nada."



Sebastião Da Gama em "Campo Aberto"
Ática, Janeiro de 1999
Páginas 87 e 88

"Carruagem de Terceira" de Sebastião da Gama

 "O Amor tinha sido
havia muito tempo.
(Seu cabelo era preto
e branco o seu vestido.)

O seu vestido é preto.
O seu cabelo é branco.
Vai sentada no banco
mesmo em frente do meu.

Ao lado, um vulto de homem
que é a memória viva
da força já antiga
que lhe agitava o seio.

Falam só do presente.
Mas suas mãos cruzadas
é nas coisas passadas
que poisam, meigamente.

Um halo de inocência
e de serenidade
- não a breve grinalda
de lírios ou de rosas -

lembra o amor sem posse
de onde lhes vem o ar
de deuses que se amaram
em dias que não morrem."



Sebastião Da Gama em "Campo Aberto"
Ática, Janeiro de 1999
Páginas 85 e 86